Entrevista com o tradutor: Caio Yurgel

Editora Jaguatirica
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9 min readMay 14, 2021

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Em 2020, a Editora Jaguatirica representou as editoras independentes na 4ª Conferência Internacional de Cooperação à Publicação e Imprensa, na China, para discutir o futuro do mercado livreiro internacional no contexto de novas tecnologias e do pós-pandemia. O primeiro livro desse intercâmbio é “A festa de um homem só’’, traduzido diretamente do chinês pelo professor e escritor Caio Yurgel.

Por: Diogo Medeiros

Caio Yurgel, tradutor da obra “A festa de um homem só”. Acervo pessoal.
Caio Yurgel, tradutor da obra “A festa de um homem só”. Acervo pessoal.

“A festa de um homem só’’, traduzida por Caio Yurgel, é a primeira obra de Lao Ma em terras brasileiras. Lao Ma (劳马), pseudônimo de Ma Junjie (马俊杰), é conhecido como pai do microconto chinês. Atual vice-secretário da Educação e membro do Comitê Central da Associação Chinesa de Escritores, foi professor de literatura na Universidade de Renmin da China e teve obras traduzidas para diversos idiomas, como o espanhol, inglês, francês e coreano. Em 2021, seus textos chegam ao Brasil pela Jaguatirica sob o título “A Festa de um Homem Só’’, série de relatos ficcionais breves que reúne cinco das obras mais célebres do autor.

O humor, o absurdo e a história recente de um país que está outra vez ocupando uma posição de destaque no imaginário global são retratados por Lao Ma em pequenos fragmentos do cotidiano na China. Segundo o próprio autor, são narrativas belas, tristes, perspicazes e humorísticas que não pertencem somente ao povo chinês, mas a qualquer leitor que possa se sentir identificado e tocado por elas.

O tradutor, Caio Yurgel, é graduado em filosofia e mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela Freie Universitat Berlin e concluiu seu pós-doutoramento na Peking University, na China. Atualmente é professor assistente de Humanidades na Duke Kunshan University em Kunshan, China, onde mapeia todas as traduções já feitas do chinês para o portugues e espanhol e do português e espanhol para o chinês.

Em suas produções, Caio é autor de “As noites de Hong Kong são feitas de neon”, obra publicada em 2019 pela Gato Bravo e finalista do Prémio Autor 2018. Também foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2015 com o romance “Samba sem mim” (Saraiva/Benvirá, 2014), entre outros.

Conversa com o tradutor sobre a obra “A festa de um homem só”:

Como escritor e tradutor que vive e trabalha entre Berlim e Pequim, conte-nos um pouco sobre sua relação com a cultura Chinesa.

Minha relação profissional com a China começou um pouco por acaso quando me ofereceram um pós-doc em Hong Kong. Morei lá meio ano em meados de 2017. Foi um choque, no melhor sentido da palavra, e foi ali que comecei a me interessar pela China, sua história, culturas, comidas, dialetos. Para alguém que trabalha com palavras, com a língua, se descobrir um completo analfabeto da noite pro dia é muito estimulante. Ir ao supermercado comprar qualquer coisa passa a ser um desafio (será que isso é xampu ou condicionador?). Por isso decidi ficar e acabei indo trabalhar na Universidade de Pequim (que mantém essa grafia colonial do nome da cidade, Beijing). Foi lá que comecei a estudar mandarim (em Hong Kong se fala cantonês). Hoje trabalho como professor de humanidades na Duke Kunshan University (que fica bem pertinho de Shanghai). Embora as aulas aqui sejam todas em inglês, sigo pesquisando e lendo muita coisa chinesa, especialmente na intersecção entre chinês, português e espanhol.

Paulo Henriques Brito, no texto ‘O tradutor como mediador cultural’, fala sobre as relações culturais durante a tradução, lutas simbólicas de poder, estrangeirizações e amortecimentos. Em sua tradução de “A festa de um homem só”, quais elementos estavam em disputa cultural? Em que momentos teve de mediar essa relação? Alguma expressão, frase ou elemento específico? Conte-nos sobre o processo, desafios e como os solucionou.

Não há nenhuma instância de fala que já não seja uma mediação — nem que seja a mediação da distância que existe entre uma ideia e nossos lábios ou dedos. A China é um país distante e historicamente mais ocupado com assuntos internos que externos. Quando se fala da China, a primeira coisa que vem à cabeça de quem nunca esteve aqui é repressão, censura, desconfiança, desinformação. Sei disso por experiência própria: a primeira coisa que me perguntam, no Brasil, quando ficam sabendo que moro na China, é se aqui se come cachorro. A China dos noticiários é um bode-expiatório de um discurso neo-liberal que acaba influenciando a percepção pública. Não que a China seja um paraíso ou isenta de qualquer culpa, mas a realidade chinesa é muito mais complexa (e interessante) do que a maneira como se noticia o país no exterior. Essa foi a grande mediação cultural dessa tradução, tentar fazer o que qualquer bom texto deve fazer: causar empatia.

Lao Ma é conhecido por seus textos curtos. Já conhecia previamente os textos do autor? Fale um pouco sobre o estilo desse escritor e sobre como foi traduzi-lo.

A escrita do Lao Ma é em igual medida curta e irônica, uma ironia que tem um pé na quase infinita história do país, e outro nas acachapantes mudanças pelas quais a China vêm passando desde os anos oitenta. O vão entre gerações é brutal. Hoje em dia, pais e filhos têm experiências completamente distintas do que seja a “China”. Daí vem a ironia. A ironia, afinal de contas, é a distância entre o que está sendo dito e a realidade. Irônico é quem se dá conta dessa distância. O grande desafio da tradução foi conseguir manter essa ironia, esse humor negro que percorre os contos e que tem algo de Kafka (rir diante do absurdo da vida moderna), e, ao mesmo tempo, respeitar os momentos de seriedade em que se está confrontando passagens da história e do sistema político atual.

Como você se prepara para a tradução?

Se estou traduzindo um livro, prefiro não ler as traduções para outras línguas porque me deixo influenciar muito facilmente. Prefiro estar sozinho com o original. No fundo, tudo depende do prazo: se não há pressa na entrega do texto, posso ler biografias do autor ou inclusive outros textos seus. Ter esse tempo extra ajuda muito na qualidade final da tradução.

Com relação às suas traduções da língua chinesa e os sistemas de escrita, há maiores desafios por se tratar de uma língua com sistema de escrita ideográfico?

Não. Traduzir do chinês não é mais nem menos difícil que traduzir do alemão ou do francês, por exemplo. O sistema de escrita em si não é um desafio, por mais complexo que possa parecer à primeira vista. O desafio são os códigos culturais. Como capturar em português toda a complexidade da hierarquia da sociedade chinesa? Quando Lao Ma alude, por exemplo, a um evento histórico de conhecimento geral na China, como traduzir isso para o português sem ter que incluir uma chata nota de rodapé explicativa? Esses elementos são muito mais desafiadores do que saber que 茶 quer dizer chá.

Como se relaciona entre a língua de partida e a de chegada? Procura privilegiar uma em detrimento da outra?

Não me filio a uma escola ou outra, isso vai depender de como me acordo naquele dia ou da natureza do texto que estou traduzindo. Minha formação é em filologia, ou seja, no estudo das palavras da maneira mais fiel possível, então uma parte de mim sempre me puxa mais para o lado da língua de partida, me faz querer encontrar etimologias semelhantes entre as duas línguas. Porém, para um texto tão fluido e cativante como esse, e também pelo fato de que, etimologicamente falando, não há quase nada em comum entre o chinês e o português, privilegiei a língua de chegada

Você precisou entrar em contato com o autor do livro para solucionar algum problema na tradução?

A linguagem desses textos de Lao Ma é relativamente acessível, então não precisei entrar em contato com ele. Os problemas que encontrei foram de contextos culturais (o autor costuma aludir a anos de história em poucas palavras). Nesses casos, consultava amigos meus, professores aqui na China, para entender melhor o sentido dessas passagens.

Qual foi o seu maior desafio na tradução de “A festa de um homem só”? Como solucionou?

O maior desafio foi mais de cunho cultural, mas dou um exemplo aqui da dificuldade de traduzir um pouco do humor de Lao Ma. Há um conto (“Bons tempos”, em português) em que vários amigos estão bebendo juntos e rememorando velhos tempos. Todos eles ocupam o cargo de diretor na infinita hierarquia corporativa chinesa. Em chinês, o nome da família é mais importante que todo o resto, então ele sempre vem antes (antes, inclusive, do primeiro nome, ou do cargo que se ocupa). Alguém de sobrenome Li, por exemplo, não seria Professor/a Li na China, mas Li Professor/a. No conto, um dos diretores faz pouco de outro cujo sobrenome é 傅 (fù), cuja pronúncia é um homófono da palavra “vice” (副). Assim, ao se dirigir ao amigo por “Diretor Fu” (傅处), o personagem está dizendo, ao mesmo tempo, “vice-diretor”. Mas a piada não funciona em português, pois em português o sobrenome vem depois do cargo (o que resultaria num estranho “Diretor Vice”). Assim, acabei optando por traduzir o sobrenome desse personagem não como Fu ou Vice, mas como Zin: “Diretor Zin”, preservando, no diminutivo, o absurdo das relações hierárquicas.

Como percebe a recepção do público brasileiro da literatura chinesa? E a recepção do público chinês, da brasileira?

Insignificantes nos dois casos, o que é uma pena. Do Brasil, o que se conhece por aqui é Jorge Amado, que foi muitíssimo traduzido nos anos cinquenta e sessenta, Paulo Coelho (muito lido mas que o público chinês muitas vezes não sabe que é brasileiro) e, em menor escala, Machado de Assis, Clarice Lispector e alguma poesia (graças aos valentes esforços de Min Xuefei e Hu Xudong, tradutores e professores de português na Universidade de Pequim). No Brasil, embora clássicos como o I-Ching (o Livro das mutações) ou Sun Zi (A arte da guerra) sejam bastante conhecidos, a literatura em si ainda é pouco explorada. Lu Xun e Mo Yan talvez sejam os nomes mais conhecidos no Brasil atualmente, embora também haja outras traduções boas, apesar das pequenas tiragens disponíveis no mercado. Mas essa é uma conversa que ainda tem muitíssimo chão pela frente.

Está trabalhando em alguma tradução? Quais são os seus projetos?

Estou trabalhando na tradução para o português de um poeta absolutamente genial que se suicidou nos anos oitenta. Também publiquei, pela Gato Bravo, um pequeno romance ambientado em Hong Kong e arredores que dá um pouco conta de retratar a vida e os afetos desse lado do mundo (As noites de Hong Kong são feitas de neon, finalista do Prémio Autor 2018). Aqui na universidade, estou trabalhando com um colega e alguns alunos num ambicioso projeto de mapeamento de todas as traduções já feitas do chinês para o português e espanhol e vice-versa.

Em 2014, em seu texto publicado no jornal A Tribuna, falou sobre a literatura como “um modo de viver vidas que não as nossas, de ver o mundo por outros olhos, e assim nos sentirmos menos sós enquanto caminhamos perdidos por entre as ruas de uma cidade otimista.um modo de viver vidas que não as nossas”. O que a literatura significa para você hoje? E a tradução?

Literatura, tradução, ou qualquer forma de expressão nesses complicados e perversos tempos que estamos vivendo só pode significar uma coisa: resistência. Precisamos fazer frente às caquistocracias que nos cercam.

*Entrevista realizada em 19 de fevereiro de 2021 por Diogo Medeiros.

Cooperação Internacional

A obra chegou ao Brasil por meio de acordos internacionais entre os dois países. Nos dias 1 e 2 de dezembro de 2020, autoridades locais e do mercado editorial internacional se reuniram aos pés do Monte Tai, em Tai’An, na 4ª Conferência Internacional de Cooperação à Publicação e Imprensa, para discutir o futuro do mercado livreiro internacional no contexto de novas tecnologias e do pós-pandemia.

Cerimônia de abertura da 4ª International Press and Publishing Cooperation Conference reuniu representantes de editoras de todo o mundo nas modalidades presencial e virtual. © Divulgação.

Paula Cajaty, editora da Jaguatirica, representava as editoras independentes brasileiras na ocasião. “Representar esses editores e editoras que possuem um saber precioso é sempre uma oportunidade de poder trazer novas perspectivas e um alento, em um momento tão difícil que temos atravessado, política e economicamente”, afirma.

De lá, foi possível a parceria entre a universidade chinesa Renmin University. “A China tem parcerias de negócios fortíssimas com o Brasil e a presença de brasileiros só aumenta nas principais cidades chinesas. Essa tendência consolida também uma troca cultural, o despertar do interesse do leitor médio chinês por narrativas estrangeiras.”

Editora Jaguatirica apresenta tradução inédita do expoente do microconto chinês, Lao Ma. Foto: Divulgação.
Editora Jaguatirica apresenta tradução inédita do expoente do microconto chinês, Lao Ma. Foto: Divulgação.

Ficha técnica

A festa de um homem só

Autor: Lao Ma | Tradução: Caio Yurgel
Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2020
ISBN 9786586324303
340 páginas
Preço: R$ 65,90
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